quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Humor de Stephen Leacock: "Uma cultivada insolência"


Do crítico literário Eugénio Lisboa dá-se à estampa este belíssimo texto sobre o humor (publicado inicialmente no Jornal de Letras, de que é cronista habitual), tão  oportuno na tristeza de um país em que há mais razões para chorar que para rir:

“Às vezes, acontece: compramos um livro que nos chama a atenção e nos acicata o apetite de o lermos e, depois, por qualquer razão, outros passam à frente e este fica esquecido por mais de uma década... Aconteceu-me com esta sumptuosa antologia de um dos maiores humoristas do século XX, cuja obra se situa entre 1910 e 1945: Stephen Leacock, canadiano de nacionalidade, que nasceu em 1869 e faleceu em 1944. A antologia a que me refiro – The Penguin Stephen Leacock, Selected and introduced by Robertson Davies , publicada em 1981, jazia na minha biblioteca, desde 1982, ano em que a comprei, em Londres. Só agora a fui ler. Leacocock foi admirado (e utilizado) por grandes actores cómicos como Jack Benny, a quem Groucho Marx apresentou as obras do grande escritor (e professor) canadiano.

As pessoas que nos fazem rir nem sempre são de feitio fácil. No geral, são até grandes pessimistas (como Mark Twain) ou francamente hipocondríacos, como Marcel Aymé. Dizia precisamente Mark Twain, com um saber de experiências feito, que: “A fonte secreta do humor não é a alegria mas sim a tristeza. Não há humor no céu.” Quanto a Leacock, Robertson Davies informa-nos, cautelosa e eufemisticamente, de que o autor de “My Financial Career” “não era, necessariamente, um homem de temperamento solar e descuidado”, aludindo, enviesadamente, à sua “têmpera imperiosa”. Alguma razão terão os humoristas para a sua amargura e para o seu pessimismo.

O estado do mundo há muito que não promete grandes coisas. O conhecido político e embaixador americano Henry Cabot Lodge, olhando o mundo do seu tempo, oferecia-nos este pálido rebuçado: “Esta organização [a ONU] foi criada para nos impedir de irmos para o inferno. Não foi criada para nos levar para o céu.” De qualquer modo, se outras razões não tivessem, os humoristas teriam, desde logo, boas razões de queixa, por a generalidade dos críticos e outros escritores os olharem como cultores de “literatura ligeira”. O escritor E. B. White notava-o, reprovadoramente: “O mundo gosta do humor, mas trata-o com paternalismo.” A Academia Sueca, por exemplo – e bem em contradição com o espírito do patrono do Prémio Nobel – parece desprezar o eminente contributo dado à literatura e ao bem-estar das pessoas por escritores do calibre de Mark Twain, P. G. Wodehouse, Dorothy Parker, Ring Lardner, DamonRunyon, O.Henry, Evelyn Waugh, Art Buchwald, H. L. Mencken, Robert Benchley, James Thurber, Groucho Marx, Woody Allen, S. J. Perelman e este que hoje aqui nos traz Stephen Leacock. Entre outros. Tudo, escritores, no meu humilde pensar, bem mais merecedores do augusto galardão do que tantíssimas mediocridades, de pendor soturno, qualidade artística mais do que duvidosa e teor de pensamento muito questionável. Além do mais, os grandes humoristas escrevem todos admiravelmente, o que nem sempre é o caso de muitos nobelizados.

A ideia de que o humorista não é sério ou não é para levar a sério é uma ideia sem pernas para andar. A brincar, se dizem sérias e importantes verdades, ou, como queria o espírito acerado desse incómodo irlandês, que se chamava George Bernard Shaw, “a vida não cessa de ser cómica quando alguém morre, do mesmo modo que não cessa de ser séria quando as pessoas riem.”

É certo que, hoje em dia – e Portugal não é excepção – os humoristas têm a vida facilitada, devido à abundância de matéria prima. Dizia o impagável WillRogers (e o que disse vale para hoje e para “aqui”) que “não é avaria ser humorista quando todo o governo trabalha para eles.” De facto, basta abrir a televisão e ouvir um ministro falar: não é preciso ir à caça de mais tema!

Voltando a Leacock, recomendo-vos, de modo geral, tudo o que escreveu, e, de modo particular, as coisas atrevidas que glosou sobre o mundo da finança e da governação, o mundo das conferências, a Universidade de Oxford, os escritores clássicos da Grécia e de Roma, etc.

Stephen Leacock cultiva magistralmente a insolência e até o ultraje, na boa linha de Aristóteles, que considerava o “espírito” como “insolência cultivada”. A este respeito, o ensaio Homer and Humbug é uma verdadeira delícia de atrevimento fronteiriço. O Professor Leacock confessa que foi, durante muito tempo, "céptico quanto aos clássicos”. Tinha uma grande facilidade em manipular os textos dos grandes nomes gregos e latinos, mas, admite ele, nesse ensaio, “nunca tirei grande prazer disso. Menti a esse respeito. A princípio, menti, talvez por vaidade. (...) Mais tarde, menti, por hábito; ainda mais tarde, porque, no fim de contas, os clássicos eram tudo quanto eu tinha e, por conseguinte, sobrevalorizei-os.”

Compreende-se, que diabo! Os clássicos é que lhe davam o pão com manteiga e, por outro lado, é humano tentar dar algum valor àquilo que possuímos. Nesta linha, esclarecia-nos um pouco mais: “Foi assim que vi um cão equivocado valorizar um cachorro com a perna partida e uma criança pobre amimar uma boneca sem vida e com a serradura a sair-lhe do corpo. De igual modo, eu amimei o meu Homero bem morto e o meu escavacado Demóstenes, embora soubesse, no mais fundo do meu coração, que há mais serradura no estômago de um autor moderno do que em toda aquela tralha de clássicos.” Não me estendo mais, nesta citação, mas recomendo vivamente, ao leitor, que procure obter o ensaio, inserto no livro Behind the Beyond, publicado em 1913.

Este género de humor, especialmente afrontoso (e afronta, sobretudo, a hipocrisia dos scholars) e à beira do ultraje, é também cultivado pelo grande H. L. Mencken, que escreve coisas como esta: “Leva bastante tempo, a uma pessoa naturalmente crédula, para se reconciliar com a ideia de que Deus, no fim de contas, não a vai ajudar.” Outro exemplo, particularmente contundente, é o deste “graffito” anónimo, aparecido em 1975: “Deus não está morto. Está vivo, mas a trabalhar num projecto muito menos ambicioso.” O afrontoso pode revestir conotações brejeiras, como neste aforismo de Lichtenberg: “Aquilo a que se chama «coração» fica muito abaixo do último botão do colete.”

Mas, voltando ainda a Leacock, não queria furtar-vos ao prazer de vos dar esta amostra da desenvoltura com que trata a famosa Universidade de Oxford. Depois de nos dar um quadro propiciatório (“Tem professores que nunca ensinam e alunos que nunca aprendem”), oferece-nos o formato, deliciosamente “inglês” do “professor”: “era suposto ser uma espécie de pessoa venerável, com bigodes, de uma brancura de neve, que chegavam até ao estômago. Esperava-se dele que vadiasse pelo campus, esquecido do mundo à sua volta. Se lhe acenavam, não dava por nada. De dinheiro, nada sabia; de negócios, muito menos. Era, nas orgulhosas palavras dos seus administradores, «uma criança»”. Mas, por outro lado, observava Leacock, “ele tinha, dentro de si, um reservatório de saber de tal profundidade, que era praticamente sem fundo. Nada, deste saber, parecia ser de qualquer valor material ou comercial para ninguém. A sua utilidade residia em salvar a alma e alargar o espírito.”

Na introdução que escreveu para a bela antologia The Best of Modern Humour (AllenLane, London, 1983), Mordecai Richler informa-nos de que uma jovem senhora de Oklahoma City perguntou um dia ao humorista James Thurber se havia algumas boas regras para escrever histórias cómicas. O grande humorista respondeu, entre outras coisas ligeiramente menos significativas, que se devia evitar, a todo o custo, escrever histórias “acerca de canalizadores que passam por cirurgiões, de xerifes que se assustam com o tiroteio, de psiquiatras que dão em doidos com pacientes do outro sexo, de médicos que desmaiam à vista de sangue, de raparigas adolescentes que sabem mais de sexo do que os pais e, por fim, de anões que se verifica serem os pais de um matulão com cem quilos de peso.” Em suma, evitar o uso grosseiro e estafado do óbvio. Em nenhum destes pecados, juro, incorre Stephen Leacock.

Para terminar, faço ao leitor um pedido: caso estes exemplos de humor mais ou menos afrontoso ponham na sua (do leitor) cabeça a ideia oportunista de um mestrado sobre “o sentido profundo e transcendente do humor em José Duro”, peço-lhe empenhadamente que desista – lembre-se do que, a este respeito, observou o inimitável Robert Benchley: “Definir e analisar o humor é o passatempo de pessoas destituídas de humor”. Fica avisado. E diga-me quando a sua dissertação de mestrado vier à luz.

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

A crítica literária do ensaísta Eugénio Lisboa vem bem a calhar e de facto escritores europeus dão aventurar-se a descrever(em) lugar(es) se bem pouco conhecem-no.

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