domingo, 27 de janeiro de 2013

GEOLOGIA SEDIMENTAR

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho, com os agradecimentos do De Rerum Natura. 
Barreiro da Fábrica de Cerâmica Pereira Campos, Aveiro, nos anos de 1960 
(Foto Carlos Romariz)
Em termos de ciência moderna e numa fase inicial, a meados do século XIX, o estudo das rochas sedimentares era estritamente descritivo e revelava, no máximo, uma preocupação de sistematização vinda do século XVIII e, ainda, em grande moda na primeira metade do século XX. Foi a fase embrionária da petrografia sedimentar, preocupada com a descrição e classificação destas rochas e de outros materiais resultantes da sedimentação ainda que não litificados.

Primeiro no terreno, macroscopicamente, em amostras de mão, depois no laboratório e, em particular, pelo recurso ao microscópio petrográfico, introduzido, em 1850, pelo inglês Henry Clifton Sorby (1826-1908), a petrografia sedimentar teve um papel importante na inventariação deste vastíssimo conjunto de produtos da crosta terrestre. A partir de então ganhou corpo uma outra atitude de pesquisa, progressivamente mais abrangente, visando as origens dos materiais, as condições ambientais em que foram gerados, as transformações que sofreram e, ainda, os processos geológicos e biológicos que lhes estiveram associados.

Nasceu assim a sedimentologia, conforme lhe chamou Hakon Wadell (1895-1962), em 1932, com o significado de petrologia sedimentar, disciplina que abarca o estudo das formações geológicas de origem sedimentar, antigas e recentes.

Por outras palavras, a sedimentologia estuda os processos que antecedem (meteorização, erosão e transporte) e presidem à sedimentação. Investiga ainda, a evolução subsequente ao depósito que, via de regra, conduz à litificação ou petrificação do material sedimentado ou seja, à diagénese, um conceito introduzido, meio século antes, em 1886, pelo geólogo alemão Karl Wilhelm von Gümbel (1823-1898).

Uma importante via de investigação associada às rochas sedimentares assenta no estudo dos fósseis que nelas frequentemente ocorrem. Aprisionados na respectiva sedimentação, os seres, animais ou plantas, que lhes correspondem, foram contemporâneos da génese dessas rochas, permitindo-nos não só conhecer as faunas e as floras do passado mas, também, identificar os ambientes correlativos e localizar essas rochas no tempo, isto é, determinar-lhes a idade. Esta outra via de investigação traz para o âmbito da sedimentologia duas importantes disciplinas das Ciências da Terra: a estratigrafia e a paleontologia.

A sedimentologia presta particular atenção às variações laterais (ao longo dos estratos) e verticais (em estratos sucessivos) e investiga, ainda, as sequências ou séries sedimentares que constituem o registo geológico, procurando ler neles todos os testemunhos (mineralógicos, texturais, paleontológicos e outros) que permitam desvendar as condições e os ambientes em que foram gerados e, assim, procurar conhecer a história do planeta.

É, por isso, parte grande de uma disciplina fulcral das Ciências da Terra, que alguns autores têm designado por Geologia Sedimentar, expressão que parece tanto mais correcta quanto é certo que uma tal abordagem ao estudo das rochas sedimentares nasceu com a moderna geologia na primeira metade do século XIX, nomeadamente com a obra, em três volumes, «Principles of Geology», editada entre 1830 e 1833, de Charles Lyell (1797-1875), o grande divulgador e continuador da obra do seu conterrâneo James Hutton (1726 - 1797).

Os avanços registados noutras áreas da ciência foram determinantes nos progressos registados na sedimentologia. A dinâmica da atmosfera, a hidrologia, a geoquímica, a física dos isótopos, as ciências do espaço e a pedologia figuram entre as disciplinas que, a cada passo, são chamadas para a resolução dos problemas que se colocam ao sedimentólogo.

Para alguns autores, a sedimentologia devia limitar-se ao estudo das acumulações sedimentares actuais, nomeadamente os depósitos não consolidados de cascalho, areias, siltes e argilas e, assim, incluir a sedimentação e os respectivos processos, mas excluir a diagénese. Neste contexto surgiu e desenvolveu-se a dinâmica sedimentar focalizada, sobretudo, na mobilização e deposição das partículas sedimentares, incluindo eventuais remobilizações e redeposições.

Assim encarada, a sedimentologia beneficiou bastante com os estudos dos oceanos e é hoje uma das principais disciplinas de apoio a este outro grande domínio das Ciências da Terra.

Neste ponto, é oportuno recordar o conceito de sedimento.

Com origem no latim (sedimentum), sedimento significa partícula sólida em suspensão num fluido e que assenta, por gravidade, quando em repouso. Abarca não só as partículas detríticas de origem terrígena (cascalho, areia, silte, argila) como, por extensão, as partículas de origem orgânica (restos esqueléticos ou bioclastos). Após transporte, menos ou mais prolongado, por agentes naturais (águas pluviais, de escorrência e fluviais, correntes marinhas, gelo, vento), estas partículas depositam-se e acumulam-se, via de regra, sob a forma de estratos ou camadas.

Mas o termo sedimento tanto designa a partícula individual sujeita à dinâmica sedimentar, como a população de partículas envolvidas nesse processo, mesmo que ainda em trânsito, como também o corpo sedimentar depositado e imobilizado, isto é, o próprio depósito, no seu conjunto. Por outras palavras, sedimento tanto é o material detrítico transportado como o depósito do mesmo. Dado o seu carácter não coeso, um sedimento, neste outro sentido, é um corpo geológico instável, temporário, passível de ser remobilizado.

É, pois, um depósito dinâmico e, nesta perspectiva, alguns autores têm-lhe dado o nome de rocha móvel. Destituído de coesão entre os seus constituintes, este tipo de depósito sedimentar escapa ao conceito vulgar de rocha, tal como ele é normalmente usado (o de pedra), quer na linguagem corrente, quer na dos profissionais da construção civil. Para estes, é a rocha firme (o bedrock, dos ingleses), na óptica dos trabalhos de fundações.

Fala-se, com efeito, de sedimentos em suspensão, sedimentos remobilizados, sedimentos transportados eolicamente, sedimentos consolidados, sedimentos litificados, etc. Sedimento é, pois, um termo abrangente e impreciso, podendo definir-se como um conjunto de partículas sujeitas ao processo gravítico, de alguma forma relacionadas entre si.

O uso do termo foi proposto, em 1875, pelo alemão Arnold Lasaulx (1839-1886), na sua classificação geral das rochas, ao estabelecer a classe “sedimentos puros”, na qual incluiu cascalheiras fluviais e de praia, areias de rio, de praia e de duna, e ainda, os Löss, termo vulgar alemão, que adoptou para indicar os sedimentos mais finos, isto é, os siltes e as argilas.

Turbidito (Foto de Brian Romans)
O estudo comparativo dos sedimentos actuais com as rochas sedimentares (entendidas como depósitos sedimentares antigos) constitui o pilar da interpretação destas rochas sob os mais variados aspectos. Com efeito, partindo do princípio que, tanto hoje como no passado, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos (1), é viável reconhecer tipos de ambientes geológicos, mais ou menos remotos, comparando as características das respectivas rochas com as dos materiais actualmente em formação nos diversos ambientes que conhecemos à superfície da Terra, e que temos a possibilidade de ver “funcionar”.

Os sedimentos detríticos revelam quase sempre, de maneira mais ou menos evidente, a natureza das rochas de onde provêm, isto é, a respectiva filiação. Podem ainda, para uma dada região, reflectir as características do relevo e do clima existentes à altura da sua formação, os agentes de erosão e transporte que os actuaram, bem como o ambiente onde, finalmente, se depositaram.

Nestes termos, é muitas vezes possível correlacionar as rochas sedimentares com a geologia, a morfologia e o clima seus contemporâneos e procurar decifrar, na sucessão dos estratos ou camadas, a correspondente sequência dos acontecimentos geológicos e, portanto, a evolução geológica correlativa.

É, pois, com base neste pressuposto que pudemos tomar conhecimento da existência de glaciações no Pré-câmbrico e no Carbónico, de desertos no Devónico da Grã Bretanha e da América do Norte, de florestas húmidas e quentes no Carbónico da Europa (incluindo Portugal) e da América do Norte, de lagunas evaporíticas no Triásico europeu, etc.

Em termos de sistemática petrográfica, as rochas sedimentares abarcam não só os materiais coesos, como arenitos, calcários, silicitos, entre muitos outros, como também os sedimentos recentes, móveis, nos termos em que assim os designamos. Não sendo, propriamente rochas, no sentido vulgar do termo, os combustíveis fósseis são produtos naturais que, por definição, se podem incluir entre as rochas sedimentares.

Se não nos choca aceitar, neste domínio, a hulha ou a antracite (a expressão carvão de pedra, de uso popular, assim o comprova), o mesmo não sucede com o petróleo bruto (crude oil) ou com o gás natural. Embora estes materiais não se transformem em “pedra”, sabemos, todavia, que satisfazem as condições definidas na petrogénese sedimentar, inclusivamente as que cabem no âmbito da diagénese.

Para além dos aspectos científicos fundamentais, do saber pelo saber, como os atrás mencionados, existem os aspectos práticos, visando a utilização das rochas sedimentares. Surgiu, assim, a sedimentologia aplicada, uma disciplina científico-tecnológica que, pelas suas ligações directas ou indirectas às actividades económicas, dispõe, normalmente, de melhores e mais desafogados meios de investigação. Destas melhores condições materiais de trabalho, muito tem beneficiado a sedimentologia pura.

A investigação na área da sedimentologia aplicada à prospecção do petróleo, por exemplo, contribuiu decisivamente para o progresso do conhecimento científico na área da geologia sedimentar no seu todo.

Em Portugal, à semelhança do que aconteceu nos países pioneiros (Alemanha, França, Inglaterra, EUA), a petrografia microscópica iniciou-se, na segunda metade do século XIX, pelo estudo das rochas ígneas (eruptivas, como então se dizia). Só mais tarde esse tipo de estudo foi usado relativamente às rochas metamórficas, primeiro, e, só depois às rochas sedimentares. A bibliografia geológica portuguesa mostra que assim foi, de facto.

Só a partir de meados do século XX começaram a aparecer os primeiros trabalhos relativos ao estudo das rochas sedimentares com recurso a técnicas laboratoriais então criadas. Estiveram na vanguarda destes estudos: Soares de Carvalho, Fausto Pureza e Ferreira Soares, em Coimbra, e Carlos Romariz e Galopim de Carvalho, em Lisboa. Anteriormente a esta fase, por exemplo, as Notícias Explicativas das Cartas Geológicas de Portugal, na escala de 1/50 000, dos então Serviços Geológicos de Portugal , dedicavam, quase sempre, um capítulo final às rochas ígneas, da autoria de especialistas nesse domínio da petrografia, atenção que nunca foi dada às rochas sedimentares, não obstante a sua significativa e, muitas vezes, maioritária presença e importância nas áreas cartografadas.

Nestes textos, de construção muito própria, num discurso de índole estratigráfica, falava-se dos materiais constituintes destas rochas, usando termos petrográficos muito gerais, baseados em observação expedita, em amostra de mão, isto é, macroscopicamente, e sem recurso a quaisquer técnicas laboratoriais de análise. Falava-se, assim, por exemplo, de argilas brancas ou vermelhas, de calcários compactos, pulverulentos ou fossilíferos, de margas, de grés ou arenitos, de conglomerados, etc.

No que se refere o ensino, a disciplina de Sedimentologia surge em 1964 com a reforma que cria a licenciatura em Geologia (em substituição da antiga licenciatura em Ciências Geológicas).

Sob as mais diversas designações, o estudo petrográfico e petrológico das rochas sedimentares é hoje uma constante ao nível do ensino superior, sendo já significativo o número de docentes e investigadores com obra realizada neste domínio da investigação científica. Foram vários os colegas estrangeiros que ombrearam connosco nestes primeiros passos. Entre eles é justo recordar os franceses P. Yves Berthou, Jacques Rey e Christian Palain, cujas publicações (nas Memórias dos então Serviços Geológicos de Portugal, nova série) são outros tantos marcos na caminhada percorrida.

NOTA:
[1] - “Princípio das Causas Actuais”, de James Hutton.
A. Galopim de Carvalho

2 comentários:

José Batista disse...

Este texto do Professor Galopim, como muitos dos que escreve sobre geologia, encerra, em si mesmo, uma série de aulas da disciplina de biologia e geologia do ensino secundário. E o que tem de notável é que a clareza da linguagem, a ordenação lógica e articulada dos conteúdos, a relação estabelecida entre tantos e tantos aspetos, faz com que ganhe uma enorme harmonia e beleza. É afinal um resumo como não é fácil fazer.
Agora, onde estão os problemas? Estão, por exemplo, no facto de os nossos alunos chegarem ao 10º ano sem gostarem de ler. E, muitos deles, sem saberem ler. Qualquer texto com meia dúzia de linhas é uma dificuldade e uma aversão. Isto também se verifica depois na escrita. Amanhã vou entregar testes. E lá tenho que "condenar" um aluno a escrever "conforme" cinquenta vezes porque ele grafou "com forme". Castigo idêntico leva uma menina que escreveu que para encontrar o epicentro de um sismo num mapa "trassava" pelo menos três circunferências, etc...
O que se tem andado a fazer com o ensino é um crime. É o que digo.

Mas não foi por os alunos terem perdido qualidade intrínseca. Isso não.

Anónimo disse...

Alguém sabe o que os americões andam a "pesquisar" no solo alentejano perto de Cabeço de Vide?
É para desconfiar....

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